“Tudo um pouco mal” nos leva para uma outra dimensão literária. Lá, já seduzidos pela narrativa elegante e aguda de Myriam, espaços se abrem e nos acolhem como num abraço afetuoso, daqueles que, mesmo inconfessáveis, necessitamos para refrescar a alma, aquecer a sensibilidade, ou, ainda, refletir sobre os dilemas humanos, os quais nos pertencem a todos, nessa luta diária com a vida que nos deram a viver.
Trecho da orelha assinado pela poeta e escritora Rita Alencar Clark
Em uma das crônicas mais impactantes de “Tudo um pouco mal” (editora Patuá, 76 págs), a autora amazonense Myriam Scotti descreve os dias em que acorda e não consegue sair da cama, vencida pela depressão. O relato atordoante configura o que é o sumo da nova obra da escritora: honestidade e sensibilidade, compartilhando reflexões íntimas sobre mal-estares individuais e coletivos. O livro foi contemplado na seleção de originais realizada pela editora Patuá para lançamento na Feira Literária Internacional de Paraty (Flip) 2024. Anteriormente, a autora já havia sido premiada em 2020 com o romance “Terra úmida”.
Com texto de orelha da obra assinado pela poeta e escritora também nortista Rita Alencar Clark, o novo livro é uma coleção de 34 crônicas escritas nos últimos quatro anos e que revelam, portanto, o espírito desse tempo permeado por isolamento social e mudanças globais. “São temas que conversam com a atualidade”, pontua Myriam. O livro reflete sobre temas contemporâneos como pandemia, excesso de atividades, saudade, resiliência e a importância de valorizar o presente. Através de uma narrativa envolvente e intimista, Myriam explora medos, angústias e espantos que ressoam na experiência de todos.
Com uma prosa afiada e acolhedora, a autora convida o leitor a uma reflexão provocativa: “Literatura não é uma viagem para Disney, onde todos os sonhos são possíveis. Livros existem para nos cutucar, incomodar, tirar do conforto, reverberar e nos convidar à reflexão”. Em suas crônicas, ela investiga a luta diária que permeia a vida humana, fazendo-nos repensar o cotidiano e as decisões que tomamos.
Os textos transbordam a beleza de uma escrita sensível e incisiva, onde conceitos como “dororidade” — a dor compartilhada que nos fala de resiliência e alteridade — emergem com força. Myriam, ao longo das páginas, entrelaça referências literárias (como o verso de Louise Glück que diz: “Nós olhamos para o mundo uma vez, na infância. O resto é memória”), em uma tentativa de revisitar o passado e questionar o presente.
Entre os destaques do livro estão duas crônicas destinadas a outras escritoras: “Uma carta para Virginia Woolf” e “Uma carta para Clarice Lispector”, em que a manauara, numa conversa intimista, disserta sobre a arte da escrita e os dilemas sociais do nosso tempo. Em outra carta, desta vez endereçada à mãe, Myriam toca num tema que perpassa alguns dos textos que compõem o livro: os desafios e delícias da maternidade.
“Acredito que uma das belezas da literatura é a possibilidade de nos colocarmos no lugar do outro e, assim, experimentarmos a ‘outridade’”, afirma a autora, que crê que as pessoas poderão se identificar com as emoções transmitidas em cada crônica.
Coragem para tratar temas espinhosos
Myriam Scotti nasceu e vive até hoje em Manaus, Amazonas. Ainda jovem, em 2003, formou-se em Direito na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e advogou até 2010, ano em que seu primeiro filho nasceu. Com as mudanças na vida, optou também por migrar de carreira, trocou, no primeiro momento, a área jurídica pela academia, concluiu o mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e, depois, decidiu se dedicar à escrita.
Em 2020 lançou o romance “Terra Úmida” (editora Patuá), vencedor do Prêmio Literário de Manaus. Em 2021, teve seu romance juvenil “Quem chamarei de lar?” (editora Pantograf) aprovado no PNLD literário e escolhido pelo edital Biblioteca de São Paulo e no mesmo ano finalista do prêmio Pena de Ouro 2021 na categoria Conto. Em 2023, lançou o livro de poemas “Receita para explodir bolos” (editora Patuá) e ainda ficou em segundo lugar na categoria conto do prêmio Off Flip.
Com “Tudo um pouco mal”, Myriam se lança em um gênero literário ainda não explorado em suas outras obras: a crônica. Para a autora, não houve dificuldades ou empecilhos na mudança de formato. “Escrevi como se conversasse com uma amiga querida, sem pretender ser eloquente, mas com vontade de provocar reflexões e diálogos”, revela.
Ainda assim, a amazonense pontua que esse novo livro lhe permitiu ter a coragem de escrever com mais liberdade sobre temas por vezes espinhosos. “De algum jeito, ao escrever sobre situações difíceis, também revi conceitos e decisões antes tidas como absolutas”, admite e conclui: “Escrever e reescrever é, para mim, uma maneira de me revisitar”.
Atualmente, Myriam está escrevendo dois projetos de romance, um deles contemporâneo e, o outro, com temática histórica.
Confira um trecho do livro (página 36):
“Não bastava que eu te nutrisse com o meu corpo, demandavas algo além, algo por demais abstrato, logo para mim, que sempre apreciei o concreto. Percebi, então, que quando escutavas a minha voz, te acalmavas e compreendi que seriam as palavras a concretude que eu tanto buscava para nós. Nosso amor sendo forjado no subsolo
e escombro do que restara de mim, antes de te conhecer. Aos poucos, comecei a resgatar as mesmas músicas que tua avó e tua bisa cantaram para mim. E, enquanto as cantava, já não sabia se te embalava ou embalava a mim mesma nas memórias que vinham em ondas brandas, como o teu olhar ao encontrar o meu durante os cantos”.
Adquira “Tudo um pouco mal” pelo site da editora Patuá:
https://www.editorapatua.com.br/tudo-um-pouco-mal-cronicas-de-myriam-scotti/p
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ANA LAURA FERRARI DE AZEVEDO
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